A noite fria de inverna que precedeu meu despertar para uma nova vida pareceu como qualquer outra… exceto talvez por ser um fim de domingo. Ou seja, aquele curto período de tempo que era, de longe, o momento mais depressivo de toda a semana.
Afinal, é quando nos damos conta de que o horror indescritível da segunda feira já se aproxima, de forma inexorável. Como uma parede de concreto indo de encontro a um carro em alta velocidade sem freio - e sem nada que possamos fazer.
Exceto, talvez, acordar em outro mundo… e evitar totalmente os horrores da segunda.
No fim da noite, porém, eu não sabia ainda que essa solução “mágica” era possível. Assim, eu apenas fiz a mesma coisa que em tantas outras deprimentes vésperas de segunda na minha vida: reuni minha resignação e me deitei em minha cama - que, pelo menos, era quentinha e confortável.
Não dormi de imediato, porém. Na verdade, como eu sempre fazia, assisti TV enquanto esperava o sono chegar.
E é bom frisar que estou falando não de modernidades de serviço de streaming, mas sim da boa e velha TV a cabo. Com dezenas de canais que podemos ficar zapeando por horas.
De alguma forma, esse modo antigo de assistir TV era muito mais relaxante para mim. Talvez porque evitasse a ansiedade de ter de escolher alguma coisa para assistir, em meio à vastidão de milhares de títulos em um catálogo de streaming.
Além disso, havia também o fator surpresa. Muitas vezes eu descobria algum filme que eu nem sabia que existia, ou que eu sequer imaginava que teria algum interesse em assistir.
Outras vezes, eu redescobria alguma velha produção de que eu nem me lembrava mais, mas que mesmo assim se revelava capaz de trazer as mesmas emoções, há muito esquecidas, da primeira vez que assisti.
Naquela noite, terminei minha sessão de TV exatamente em um desses últimos casos. Descobri um daqueles velhos filmes de Nárnia passando - creio que o último, aquele em que as crianças viajam em uma “caravela”.
(Bom, ao menos era um navio de madeira movido a vela. Para falar a verdade, porém, não tenho a menor ideia das tecnicalidades que diferenciam uma caravela de - digamos - um galeão.)
Peguei o filme mais para o final, naquela cena em que eles finalmente encontram o Leão Aslan, em uma região liminar que parecia ser a divisão entre o mundo dos vivos e dos mortos… formada por uma praia infinita de areia branca onde havia uma “onda eterna”, que sempre se mantinha erguida e fluindo, sem no entanto jamais sair do lugar ou se quebrar.
Por essa altura, o sono já estava chegando forte - mas me forcei a permanecer acordado para ver a despedida do Leão Aslan. Quando a menininha, aos prantos, pergunta se ainda vão vê-lo quando voltarem para a Terra, e ele responde que “no seu mundo, vocês me conhecerão por outro nome”.
(Naturalmente, essas são citações aproximadas, puxadas puramente da minha memória. Afinal, escrevo estas linhas da minha nova vida… onde não existe Internet para eu conferir linhas de diálogos de filmes.)
Então, depois de ouvir essa frase de efeito, finalmente desliguei a TV e fechei os olhos.
Quase que de imediato, mergulhei em um sono profundo como nunca antes experimentei: negro e sem sonhos, trevas amorfas de um doce Oblívio que, talvez, fosse indistinguível da própria Morte.
O que, em retrospecto, talvez fizesse sentido. Afinal, se eu estava para despertar para uma nova vida, quem sabe eu tinha de “morrer” antes - de certa maneira - para então renascer depois.
Minha consciência ficou dissolvida nessa escuridão sem forma por um tempo imensurável (por definição): poderia ter sido um instante, mas também uma pequena eternidade. Por algum motivo, porém, eu “sentia” a segunda hipótese como mais verdadeira.
Mas, enfim, quando minha consciência finalmente começou a emergir dessas trevas absolutas, a primeira sensação que experimentei foi, estranhamente, a de… molhado.
Para ser mais preciso, aliás, na verdade foi a aterradora constatação de que eu estava completamente submerso - e sem sentir um fundo sob meus pés.