Tuesday, May 14, 2024

Renascimento - Parte 1

A noite fria de inverna que precedeu meu despertar para uma nova vida pareceu como qualquer outra… exceto talvez por ser um fim de domingo. Ou seja, aquele curto período de tempo que era, de longe, o momento mais depressivo de toda a semana. 

Afinal, é quando nos damos conta de que o horror indescritível da segunda feira já se aproxima, de forma inexorável. Como uma parede de concreto indo de encontro a um carro em alta velocidade sem freio - e sem nada que possamos fazer. 


Exceto, talvez, acordar em outro mundo… e evitar totalmente os horrores da segunda. 


No fim da noite, porém, eu não sabia ainda que essa solução “mágica” era possível. Assim, eu apenas fiz a mesma coisa que em tantas outras deprimentes vésperas de segunda na minha vida: reuni minha resignação e me deitei em minha cama - que, pelo menos, era quentinha e confortável. 


Não dormi de imediato, porém. Na verdade, como eu sempre fazia, assisti TV enquanto esperava o sono chegar. 


E é bom frisar que estou falando não de modernidades de serviço de streaming, mas sim da boa e velha TV a cabo. Com dezenas de canais que podemos ficar zapeando por horas. 


De alguma forma, esse modo antigo de assistir TV era muito mais relaxante para mim. Talvez porque evitasse a ansiedade de ter de escolher alguma coisa para assistir, em meio à vastidão de milhares de títulos em um catálogo de streaming. 


Além disso, havia também o fator surpresa. Muitas vezes eu descobria algum filme que eu nem sabia que existia, ou que eu sequer imaginava que teria algum interesse em assistir. 


Outras vezes, eu redescobria alguma velha produção de que eu nem me lembrava mais, mas que mesmo assim se revelava capaz de trazer as mesmas emoções, há muito esquecidas, da primeira vez que assisti. 


Naquela noite, terminei minha sessão de TV exatamente em um desses últimos casos. Descobri um daqueles velhos filmes de Nárnia passando - creio que o último, aquele em que as crianças viajam em uma “caravela”.


(Bom, ao menos era um navio de madeira movido a vela. Para falar a verdade, porém, não tenho a menor ideia das tecnicalidades que diferenciam uma caravela de - digamos - um galeão.)


Peguei o filme mais para o final, naquela cena em que eles finalmente encontram o Leão Aslan, em uma região liminar que parecia ser a divisão entre o mundo dos vivos e dos mortos… formada por uma praia infinita de areia branca onde havia uma “onda eterna”, que sempre se mantinha erguida e fluindo, sem no entanto jamais sair do lugar ou se quebrar. 


Por essa altura, o sono já estava chegando forte - mas me forcei a permanecer acordado para ver a despedida do Leão Aslan. Quando a menininha, aos prantos, pergunta se ainda vão vê-lo quando voltarem para a Terra, e ele responde que “no seu mundo, vocês me conhecerão por outro nome”. 


(Naturalmente, essas são citações aproximadas, puxadas puramente da minha memória. Afinal, escrevo estas linhas da minha nova vida… onde não existe Internet para eu conferir linhas de diálogos de filmes.)


Então, depois de ouvir essa frase de efeito, finalmente desliguei a TV e fechei os olhos. 


Quase que de imediato, mergulhei em um sono profundo como nunca antes experimentei: negro e sem sonhos, trevas amorfas de um doce Oblívio que, talvez, fosse indistinguível da própria Morte. 


O que, em retrospecto, talvez fizesse sentido. Afinal, se eu estava para despertar para uma nova vida, quem sabe eu tinha de “morrer” antes - de certa maneira - para então renascer depois. 


Minha consciência ficou dissolvida nessa escuridão sem forma por um tempo imensurável (por definição): poderia ter sido um instante, mas também uma pequena eternidade. Por algum motivo, porém, eu “sentia” a segunda hipótese como mais verdadeira. 


Mas, enfim, quando minha consciência finalmente começou a emergir dessas trevas absolutas, a primeira sensação que experimentei foi, estranhamente, a de… molhado. 


Para ser mais preciso, aliás, na verdade foi a aterradora constatação de que eu estava completamente submerso - e sem sentir um fundo sob meus pés. 



Friday, April 5, 2024

A Viagem de Luhkien - Parte 1



“Jovem Luhkien, contemple: a Zona de Transição!”

O tom usado por Mestre Eustahk foi tão pomposo e exagerado que chegou a soar um tanto cômico. Ainda assim, seu Discípulo - Luhkien - tinha de admitir para si mesmo que a Zona de Transição era de fato uma visão impressionante… mais que merecedora de ser anunciada com tamanha grandiloquência.


À primeira vista, ela parecia uma imensa tempestade em alto mar. Brotando diretamente das ondas, e já a uma proximidade perturbadora da hidronave levando a bordo o Mestre e seu Discípulo.


Sob um segundo olhar mais atento, porém, logo ficava claro que a suposta tormenta apresentava… peculiaridades demais, e exóticas demais, para poder ser realisticamente considerada apenas um mero fenômeno meteorológico.


Para começo de conversa, a geometria era por demais regular. De fato, a Zona de Transição poderia ser descrita como uma única nuvem gigantesca, com a forma de um disco quase perfeito - com muitos e muitos quilômetros de diâmetro, e várias centenas de metros de altura.


Toda essa altitude não era, porém, uma única “parede” nebulosa lisa, subindo direto na vertical, sem interrupções, das ondas até o topo. Na verdade, muito pelo contrário, ela era dividida em camadas superpostas, uniformemente espaçadas - dando à Zona de Transição o curioso aspecto de um gigantesco… bolo, impossivelmente flutuando sobre o alto mar.


Os espaços entre essas camadas eram preenchidos por um relampejar quase constante. De fato, toda essa atividade elétrica era a origem do nome alternativo pelo qual a Zona de Transição também era frequentemente chamada.


As Névoas Trovejantes!


Os relâmpagos estavam particularmente visíveis nas condições de iluminação lá fora - já que a Hidronave havia chegado às imediações da Zona de Transição na hora do crepúsculo. Luhkien imaginava que ao um menos um dos dois sóis amarelos gêmeos do Sistema Talahpa já devia estar tocando o horizonte do outro lado da hidronave, na direção da popa… mas não havia como realmente saber, já que ele e Eustahk estavam na proa.


Na verdade, sabendo que aquela era a primeira vez que seu Discípulo iria cruzar a Zona de Transição (ou mesmo a primeira vez que ele via as Névoas Trovejantes com seus próprios olhos), Mestre Eustahk o levou para aquele que era o melhor lugar a bordo para se observar o evento: o Mirante de Proa. 


Este era um grande salão semi-circular, localizado - como o nome já dizia - na parte frontal da hidronave. A parede em arco acompanhava a curvatura do casco exterior, inclinada para o lado de dentro, e era inteiramente transparente… feita de grandes placas de vidro que iam do teto ao chão. 


Assim, de lá era possível desfrutar de uma magnífica visão de cento e oitenta graus do mundo exterior. Um panorama que, no momento, era inteiramente dominado pela Zona de Transição.


As partes enevoadas da formação estavam já ligeiramente tingidas de tons róseos e avermelhados, devido à luz do crepúsculo vinda do outro lado da hidronave. Enquanto isso, os relâmpagos pareciam cada vez mais brilhantes em meio à crescente semi-escuridão.


Do outro lado da Zona de Transição, as primeiras estrelas do Undécimo Anel Galáctico já começavam a brilhar, se alinhando na faixa de alta densidade característica dividindo o céu. 


acima das Névoas Trovejantes, Zadohpus, o imenso planeta gasoso ao redor do qual Grendohr girava, aparecia como um enorme crescente cortado por faixas coloridas avermelhadas. Ele era ainda envolvido por um complexo sistema de anéis, sendo que o mais exterior - fino e comparativamente escuro - era visivelmente inclinado em relação aos demais.


Sim, embora Grendohr frequentemente fosse chamado de “planeta” (numa imprecisão muito comum ao longo da Galáxia, onde a palavra era usada meio que como sinônimo de “mundo”), na verdade, tecnicamente, era uma lua. Uma das quatro grandes luas orbitando ao redor de Zadohpus.


No momento, apenas duas das outras três luas estavam visíveis no céu: Tridehtus e Zontohr. A última era exatamente a que Luhkien estava procurando - e por um motivo bem simples: era para lá que a hidronave ia… após adentrar adentrar a Zona de Transição e “saltar” por entre os mundos, através do Empíreo.


Renascimento - Parte 1

A noite fria de inverna que precedeu meu despertar para uma nova vida pareceu como qualquer outra… exceto talvez por ser um fim de domingo. ...